Em vigor desde o último dia 3, a chamada Lei de Abuso de Autoridade Lei 13.869/2019 já surtiu ao menos um efeito prático: uma consulta às páginas de instituições de segurança pública na internet revela que, para se ajustar às novas regras, as corporações estão deixando de divulgar fotos e nomes de pessoas detidas que ainda não tenham sido condenadas pela Justiça.
Além de tipificar os crimes de abuso de autoridade, a lei estabelece as penas a que estão sujeitos os agentes públicos que a descumprirem. O Artigo 13, por exemplo, veta o uso da força, da violência ou de grave ameaça para obrigar o detento a exibir-se, mesmo que parcialmente, “à curiosidade pública”. Já o Artigo 38 prevê pena de seis meses a dois anos, mais multa, para o agente público responsável por investigação que, antes de decisão judicial, atribuir culpa a qualquer investigado ou denunciado.
A lei se aplica a todo servidor público, incluindo promotores e procuradores. E também prevê sanções para o responsável que deixar de comunicar a detenção de alguém ao juiz ou à família do preso; prolongar a prisão sem motivo justificado; decretar a condução coercitiva de suspeito sem tê-lo antes intimado a comparecer para depor; mantiver, em uma mesma cela, presos de sexos diferentes ou crianças e adolescentes com maiores de idade; além de prolongar, indefinidamente, qualquer investigação.
Adaptação
Em todo o país, forças de segurança pública estão procurando se ajustar à lei. Na última quarta-feira (15), a Polícia Militar do Pará iniciou um ciclo de palestras para capacitar os policiais sobre as implicações da Lei de Abuso de Autoridade. A proposta da corporação é, em conjunto com o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), percorrer todas as unidades militares do estado. As guardas civis de Contagem (MG) e de Paulo Afonso (BA), entre outras, também já reuniram seus integrantes ou divulgaram orientações sobre os novos procedimentos.
Já a Secretaria de Segurança Pública da Bahia determinou que as polícias Militar e Civil deixem de apresentar presos e de divulgar seus nomes e fotos. “Nos casos de procurados pela Justiça com mandados de prisão, a SSP entende que a divulgação das imagens atende a um bem maior, o direito constitucional do cidadão à segurança pública”, informa a pasta, que vai disponibilizar, em seu site, uma cartilha para orientar policiais militares e civis.
Chefe da divisão de comunicação da Polícia Militar de Goiás, o tenente-coronel Sandro Mendonça confirmou à Agência Brasil que a entrada em vigor da lei aprovada em agosto do ano passado já trouxe mudanças para o dia a dia da corporação.
“Houve sim um impacto. Suspendemos, em definitivo, a divulgação de qualquer foto e de nomes, para não corrermos o risco de sermos enquadrados por suposto constrangimento. Estamos orientando todos a evitar comentar detalhes de processos disciplinares em andamento, principalmente em fase inicial. E já pedimos à Corregedoria para preparar um documento para os oficiais saberem como orientar seus subordinados”, detalhou Mendonça.
Para o tenente-coronel, a insegurança inicial que a lei vem despertando é natural e típica de novidades que acarretam mudanças práticas. “Muitos operadores da área estão inseguros, mas isto se deve ao fato deste ser um assunto muito novo, sobre o qual ainda não há uma jurisprudência [conjunto de decisões dos tribunais que representa a interpretação jurídica majoritária sobre o assunto]”, comentou Mendonça, citando a divulgação da foto de procurados pela Justiça como um dos exemplos em que a Polícia Militar goiana ainda tem dúvidas sobre a melhor forma de agir.
“Antes divulgávamos a foto destas pessoas para pedir o auxílio da população, que nos ajudava com informações. Agora, por receio, estamos evitando fazer isto. Pelo menos até que a interpretação da lei esteja pacificada”, acrescentou Mendonça.
Para o tenente-coronel Orlandino Lima, chefe da assessoria de comunicação da PM paraense, é cedo para julgar o mérito da lei. “Será preciso algum tempo até conseguirmos avaliar seu real impacto. No nosso caso, estamos tomando mais cuidado não só com a divulgação de nomes e fotos, mas também com as abordagens policiais, que precisam ser feitas, mas não podem resultar em constrangimento desnecessário ou coação”, disse Lima.
Repórter policial há quase 30 anos, advogado e autor do livro Reportagem Policial – Um Jornalismo Peculiar (ed. Realejo), Eduardo Velozo Fuccia também notou “uma certa preocupação” de parte de suas fontes. “Ainda não recebi nenhuma manifestação oficial, mas a preocupação é perceptível”. Para Velozo, a Lei 13.869 não prejudicará o trabalho jornalístico ético e cuidadoso, nem a divulgação de informações de real interesse da sociedade.
“A lei apenas consolida o que a legislação brasileira já prescrevia e que nem sempre era cumprido. É um freio aos desmandos, aos excessos que, eventualmente, eram praticados – em alguns casos, com a anuência da imprensa, que divulgava o nome e a imagem de pessoas que não passavam de suspeitas, sem o devido cuidado para evitar danos morais ou materiais. Inclusive para empresas, que também podem ser injustamente prejudicadas”, declarou o jornalista, discordando dos que consideram que o objetivo da lei é proteger figuras poderosas alvo de investigações.
“Quantitativamente, o abuso afetava mais aos chamados peixes pequenos. No caso de graúdos, os que detém poder político e econômico, os órgãos oficiais sempre tiveram uma cautela maior. Justamente por saberem que podiam ser responsabilizados mais facilmente. Quando não havia esta cautela, na maioria das vezes, era porque o vazamento atendia a algum interesse”, afirmou Velozo, defendendo a discricionariedade, ou seja, a margem de liberdade para o agente público agir sem ferir a legislação.
“Qualquer lei que engesse a ação do agente público [ao prescrever uma única forma de agir juridicamente] pode prejudicar o interesse da sociedade. A divulgação das fotos de pessoas procuradas, por exemplo. Há casos de grande clamor, e se partirmos da premissa de que, quando a instituição policial veicula estas informações, é porque já tem, contra o investigado, um mandado de prisão em aberto, provas, a não divulgação seria um exagero contrário ao interesse da sociedade”, acrescentou o jornalista.
Críticas
Apesar de ser fruto de um debate de dois anos no Congresso Nacional, e de substituir a Lei 4.898, de 1965, a Lei de Abuso de Autoridade não é unanimidade. Criticada nas redes sociais, inclusive por uma suposta “subjetividade”, a nova lei mobilizou associações de magistrados, de membros do Ministério Público, de policiais e de auditores fiscais, além do partido Podemos, que recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar suspender sua entrada em vigor. No total, há sete ações questionando a constitucionalidade da nova norma, mas não há prazo definido para que o assunto seja julgado. O relator das ações é o ministro Celso de Mello.
*EBC