A Bênção e as algemas

algemasHá muito tempo que pensava em escrever sobre uma cena que me chocou quando trabalhava como advogada na área criminal, mas a correria do dia a dia, trabalho, casa, filhos, acabaram retardando o presente relato que agora passo a fazê-lo.

Pois bem, passados dois anos que havia me formado em Direito, diga-se de passagem, que sou fascinada pelo direito penal, encontrava-me no presídio da cidade para mais um atendimento a um cliente, na ocasião, enquanto aguardava sentada em um banco na entrada do presídio, observei logo em minha frente, uma senhora e um menino que devia ter em torno de 04 anos de idade.

Logo de cara, notei no olhar daquela mulher, um olhar de gente sofrida da labuta de uma vida voltada para o campo e para os filhos, não sei por que razão me veio isso na mente, era uma tristeza tão grande que parecia não haver força sequer para olhar para cima, a cabeça teimava em fixar os olhos para o chão. O menino, ah o menino… estava lá, junto dela e, de vez em quando, ia na porta, olhava para a rua, depois entrava, ajoelhava no chão como se estivesse brincando com um carrinho, olhava para a mulher e seguia em silêncio pra lá e pra cá.

Como estava demorando o atendimento naquele dia, resolvi puxar conversa com a senhora, perguntei logo o que fazia ali, antes que me respondesse, ousei emendar outra pergunta: – é o filho da senhora que está preso? Com um olhar constrangido, ela levantou a cabeça e respondeu: “- é minha filha, a mãe dele!”, passando a mão na cabeça da criança, que me olhou como toda criança daquela idade que não entende o que é um presídio, salvo algumas exceções.

Em seguida, sem chamar a atenção do menino, perguntei o motivo, já imaginando que seria algum envolvimento com tráfico, pois todos os dias milhares de mulheres se envolvem com esse tipo de crime, por conta de relacionamentos amorosos com homens ligados ao tráfico, e acabam sendo presas, porque além de “companheiras”, elas se tornam traficantes também. Assim, como eu esperava, a resposta veio, baixinha e envergonhada… não é fácil para uma mãe conviver com uma situação como esta.

Após alguns minutos de conversa e uma grande expectativa daquela mulher em aguardar o momento em que poderia ver sua filha, surge a agente penitenciária trazendo-a e, para minha surpresa, ela aparece com as mãos para trás com algemas do outro lado das grades que dividem a sala onde estávamos.

Ao ver a filha, a mãe se aproxima das grades para falar mais de perto, enquanto o menino colocava a mão através delas para fazer um ato tão comum a tantas pessoas, que é o pedido da bênção. A sensação que tive ao ver aquela cena era de indignação misturada a uma angústia profunda, o gesto do menino de tocar nos dedos da mãe e falar “bença mãe”, me chocou! Me chocou tanto, porque aquela mulher teve que virar as costas para dar a proteção que o filho precisava, de uma forma desumana, pois por se encontrar já encarcerada, foi algemada como se pudesse de fato oferecer qualquer risco aos agentes que ali se encontravam.

Naquele momento, esqueci que era advogada, apenas me veio à mente um sentimento materno de poder pegar aquela criança no colo, levá-lo pra casa, olhar de frente pra ele e pegar na sua mão e dizer: “Deus te abençoe meu filho!”, com a consciência da importância da bênção dos pais na vida dos filhos.

Aquela mãe, aquela avó, aquele menino, são vítimas de um país que não respeita a dignidade da pessoa humana, que viola frontalmente os direitos humanos, como a desnecessidade do uso de algemas naquele momento e local, e, principalmente, diante de uma criança que certamente crescerá com uma imagem revoltante na mente, capaz de influenciar sua personalidade. Sempre que relembro este episódio, vem na mente um trecho da música de Chico Buarque chamada “O Meu Guri”, que fala o seguinte:

“ (…) Olha aí! Olha aí!

Olha aí!

Ai, o meu guri, olha aí!

Olha aí!

É o meu guri e ele chega

Chega suado e veloz do batente

Traz sempre um presente pra me encabular

Tanta corrente de ouro, seu moço

Que haja pescoço pra enfiar (…)”

Que Deus abençoe esta criança para que seu futuro não siga o ritmo desta música, tampouco se cumpra o que está escrito, que não carregue do mundo os piores tratos… em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém!

 

Fonte: Sandra Carla C. Marques Martins

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