‘Em fevereiro de 1965 cheguei a Salvador para trabalhar e estudar.Conduzido pelo meu boníssimo pai, João Hipólito Rodrigues, fui hospedado como mensalista na Pensão Moderna, situada à Rua Monte Alverne, nº 9, Distrito da Sé, propriedade da livramentense, D. Maria Teixeira. Também como mensalistas eram hóspedes os sobrinhos da proprietária, irmãos Raul e Walter Vilas Bôas. Com a convivência, Raul e Walter, de muito boa índole, generosos, sempre dispostos a literalmente dividir o pão, tornaram meus chegados, como verdadeiros irmãos.
Eram tantos os estudantes e trabalhadores hóspedes mensalistas que formamos nosso time de futebol. Dentre os boleiros, Ari, guaratinguense, tinha o irmão apelidado Jonga, Reservista do Exército, que na folga, ordinariamente sábado e domingo, comparecia à Pensão. Bom de bola, jogava em nosso time.
O pernambucano recifense João Bosco Lubarino dos Santos, conhecido como João Halli Galli, balconista de uma Farmácia no Comércio, conhecia Waldir Serrão, o Big Bem, amigo de Raul Seixas e músico componente do conjunto Raulzito e Os Panteras.
Vivíamos a fase revolucionária e o Comando da VI Região Milita, conveniado com o Governo do Estado da Bahia, implantou o Projeto Patrulha Mista, composta de 6 militares, 2 de cada força, comandados por um Sargento da Aeronáutica, com a finalidade de garantir maior segurança noturna nas áreas suscetível de desordem. Em Salvador, no Distrito da Sé, onde funcionavam desde os elegantes Bordéis ao mais baixo meretrício, este no histórico Pelourinho, nas Ruas do Maciel de Cima, aonde o ir, vir e ficar transformavam o local em um verdadeiro burburinho. Ali, a prática sexual no jargão do ambiente, “afogar o ganso” ou “trocar o óleo”, custava de cinco a vinte cruzeiros, moeda da época, compatível com a mesada do estudante e do salário do trabalhador comerciário, grande maioria dos mensalistas da Pensão.
Ari trabalhava na empresa Correia Ribeiro S/A Comércio e Indústria.
Big Bem às vezes aparecia no Bar de Nelson, situado a vinte metros, mais ou menos, em diagonal à direita da Pensão, tomava uma dinamarquesa Calsberg, que ele chamava a loira mais frajola da Bahia e recebia de Halli Galli uma cartela de rebite que ele mesmo também consumia e levava para o consumidor final, Raulzito, avesso ao produto injetável. Só cheirava ou ingeria.
Numa certa noite de sábado, jogávamos partidas de Biriba, quando jonga chegou procurando Ari. Alguém informou que ele tinha ido para o Maciel “afogar o ganso”. Jonga saiu e ao terminarmos a partida o mesmo alguém que informou o provável paradeiro de Ari, sugeriu irmos ao Maciel. Saímos e ao chegarmos no Terreiro de Jesus, próximo à Rua Gregório de Matos, alcunhado Boca do Inferno, início do Maciel, deparamo-nos com a Patrulha Mista. O Sargento comandante nos abordou solicitando documento de identificação. Cada um se identificou e na minha vez, percebi que estava sem a identidade. Não me fiz de rogado. Tirei do bolso uma foto e disse ao Sargento: não tenho bem a identidade, mas, tenho essa foto que tirei na praia. Na foto eu trajava apenas short. O Sargento, também, não se fez de rogado. Com a foto na mão esquerda dirigiu-se para os seus comandados, mostrando-a. Após todos verem, a rasgou em pedacinhos. Obviamente que não protestei. Imaginando estar o Sargento satisfeito tentei andar em direção aos meus companheiros já distantes. Ao dar o passo recebi um pescoção de mão fechada, tão bem aplicado que me fez catar cavaco e perder o rumo do Maciel à minha esquerda, indo para a Rua São Francisco à minha direita. No final do quarteirão alcancei a Rua Monte Alverne e chispei rumo à Pensão. No primeiro cruzamento com a Rua Saldanha da Gama ouvi voz feminina gritando: “Rere Bebê, seu fintão, me dá meu dinheiro. “Me co… e não pagou o acertado”. Olhei para onde ouvia a voz e vi Ari caminhando em marcha acelerada e a mulher, nossa conhecida do Maciel, tentando alcançá-lo. Ao me ver a mulher parou e Ari conseguiu chegar à Pensão. Olhei rumo à Praça da Sé e vi a mesma Patrulha entrando na Rua. Aí quem acelerou o passo fui eu. Não obstante a pirraça do porteiro Henrique para abrir a porta, consegui entrar antes de me deparar mais uma vez com os patrulheiros. Não tive coragem sequer para esperar a Batida que deram no Bar de Nelson onde Halli Galli acompanhado de seu Xodó, loura oxigenada meretriz do brega Seminário, nome de Guerra “Marli Marinheira”, originário da fantasia que usava no carnaval pipoca, e Big Bem, tomavam a Calsberg e degustavam caranguejo e lambreta.
A partir daquela noite o meu fio de recordação me ligou como se fosse agora: à ABORDAGEM da PATRULHA MISTA, O PESCOÇÃO e o TOMBO CATA CAVACO.
Dali em diante até para ir ao banheiro carrego comigo documento de identificação com foto atualizada, na forma da lei.’