Hospitais brasileiros já utilizam a dexametasona e outros corticoides dentro do arsenal de terapias farmacológicas para o doente grave de Covid-19 e devem ampliar o uso a partir dos resultados de estudo da Universidade de Oxford apontando que a droga reduz a mortalidade de pacientes internados.
O uso off label (fora da bula, sob responsabilidade do médico) da medicação foi sugerido por uma diretriz de três sociedades médicas (de medicina intensiva, de infectologia e de pneumologia) no início da pandemia no Brasil, quando ainda não havia evidências contrárias ou favoráveis a ela.
No documento consta que o remédio não deve ser usado na fase inicial da doença. Entre o sétimo e o décimo dia da infecção, poderia ser utilizado em casos selecionados de pacientes internados para controle da inflamação causada pela Covid-19.
Segundo a médica Suzana Margareth Lobo, presidente da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), o novo estudo traz mais segurança ao estabelecer doses recomendadas da dexametasona para doentes em suporte de oxigênio e em ventilação mecânica.
“Muitos intensivistas já vinham usando em doentes com síndromes respiratórias agudas graves. A gente usava em doses mais altas. Agora pode entrar em paciente em ventilação mecânica, mas não só nos muito graves. Provavelmente será usada em maior escala.”
O médico Luciano Cesar Pontes de Azevedo, superintendente de ensino do Hospital Sírio-Libanês e coordenador do estudo sobre o uso da dexametasona na Covid-19 no Brasil, diz que o fato de a droga estar sendo muito utilizada durante a pandemia acabou atrasando o recrutamento de pacientes para a pesquisa.
“Muitos pacientes chegavam já fazendo uso há três, quatro dias e a gente não conseguia incluir no estudo [para a inclusão, eles precisam ser ‘virgens’ da terapia]”, afirma.
Segundo ele, nas últimas semanas os hospitais diminuíram o interesse pela hidroxicloroquina, cujos estudos não encontraram evidência de eficácia, e optaram mais por corticoides e anticoagulantes. “São os dois tratamentos off label da Covid mais utilizados no momento. Mas evidências mesmo só começam a ser geradas agora, a partir do Recovery [o estudo britânico].”
De acordo com o infectologista Esper Kallás, professor da USP, no Hospital das Clínicas o uso de corticoides já é sugerido em casos mais graves.
“O estudo confirma o que nós já havíamos percebido: para aqueles casos mais graves, com comprometimento pulmonar mais extenso, com insuficiência respiratória, um pouco de corticoide ajuda.”
O hospital tem usado outros corticoides, como metilprednisolona e hidrocortisona. “Na pneumologia há preferência pela metilprednisolona porque ela penetra melhor nos pulmões. Nas inflamações do cérebro, a preferência é pela dexametasona. O uso do corticoide deve ser personalizado, e não usado de forma indiscriminada”, diz Kallás.
No mercado mundial há 60 anos, a dexametasona já não tem mais patente e é de baixo custo. Em maio, foram vendidas no Brasil 1,7 milhão de caixas da medicação, fabricadas por 27 farmacêuticas. A caixa com dez comprimidos custa em torno de R$ 7. O remédio é usado contra doenças inflamatórias e respiratórias, reumatismos, alergias, entre outros.
A preocupação dos médicos é que pelo fato de ser uma droga barata e de fácil acesso haja corrida às farmácias a exemplo do que se viu com a cloroquina e a hidroxicloroquina. O medicamento não é indicado para casos leves de Covid-19, como já advertiu a OMS (Organização Mundial da Saúde).
“O estudo é bastante claro nas indicações. É para paciente hospitalizado, internado, que precisa de oxigênio ou ventilação. Não é para casos leves ou prevenção”, diz Lobo.
Ela diz que a droga pode causar efeitos adversos, como aumento da glicemia e da pressão arterial, o que pode descompensar os pacientes diabéticos e hipertensos, além de hemorragias digestivas. O estudo britânico apontou redução do risco de morte em 35% em pacientes em ventilação mecânica e em 20% nos que dependiam de oxigênio. “Os resultados são muito bem-vindos, mas não representam cura.”
Para Lobo, será preciso medir o impacto real da terapia na prática clínica. “Pode ser até menor do que o demonstrado no estudo [que foi controlado] porque muitos médicos aqui já vinham utilizando a medicação.” Kallás tem a mesma percepção: “O efeito é bom, mas não é essa maravilha toda. Reduziu a mortalidade em até 35%. E, na doença mais precoce, em vez de ajudar, pode atrapalhar.”
Segundo ele, isso reforça conceito básico na infectologia. “Com a infecção na fase inicial, o sistema imune tem que estar funcionando bem para eliminar o vírus. Se der corticoide, você diminui um pouco a capacidade do organismo de combater [a infecção].” Como a Covid é doença bifásica, ou seja tem a fase virêmica no início e a inflamatória depois, o corticoide só está indicado para a fase mais tardia da infecção.
Para o biomédico Renato Sabattini, professor na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, é preciso que as pessoas entendam que a cura de pacientes graves com Covid é resultante de um conjunto enorme de medidas terapêuticas, aplicadas por profissionais e recursos intensivistas por longo tempo. “Corticosteroides de forma nenhuma são milagrosos. Muita gente vai continuar morrendo mesmo tratada.”
PESQUISA BRITÂNICA
Um comitê de especialistas independentes anunciou nesta sexta (19) que o estudo brasileiro sobre o uso da dexametasona em pacientes internados com Covid-19, o segundo maior em número de doentes seguidos, deve prosseguir.
Havia dúvida se os resultados promissores do estudo britânico, com 6.000 pacientes, já seriam suficientes para atestar a eficácia da droga e ainda valeria a pena continuar a pesquisa brasileira sobre a mesma droga, que acompanha hoje 284 pacientes. A proposta é chegar a 350 pacientes.
No país, a dexametasona é testada no Coalizão Covid Brasil, que reúne médicos pesquisadores de alguns principais hospitais, com outras potenciais terapias. Os resultados têm sua divulgação prevista para agosto.
Segundo Luciano Azevedo, que coordena ob braço do estudo, alguns dos investigadores entendem que, dados os resultados robustos do Recovery, seria antiético continuar “randomizando” [escolhendo de forma aleatória] os pacientes.
Com a decisão do comitê independente de que o estudo deve ser continuado, Azevedo acredita que deve cair muito a taxa de inclusão de novos pacientes. “Muitos já vão estar usando a medicação [de forma off label].”