Por milênios, a humanidade construiu as bases de uma das cartas mais importantes para o convívio pacífico entre as nações e para que qualquer pessoa pudesse sobreviver com o mínimo de dignidade e garantia. Esse texto tomou corpo e alma após a Segunda Guerra Mundial. O mundo estava devastado com as vidas ceifadas com o holocausto e com a bomba de Hiroshima e Nagasaki. Era preciso de leis para garantirem a liberdade individual de homens e mulheres, adultos e crianças, brancos, pardos, índios ou negros. Com inspirações no Iluminismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi apresentada ao mundo em 10 de dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU). O texto elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da ONU foi coordenado pela viúva do presidente Franklin Roosevelt, Eleanor Roosevelt, uma das grandes defensoras do Direitos Humanos. Passados 70 anos, a data inspira reflexão diante de possíveis retrocessos, como retirada de direito de minorias a exemplos de negros, mulheres e homossexuais.
De acordo com Juliette Robichez, doutora em Direito pela Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, por essência, os direitos humanos pertence ao Direito Internacional e zela pelas quatro liberdades: expressão, religião, viver sem medo e com dignidade humana. O texto, em sua concepção, é “um instrumento necessário para a apaziguar as relações internacionais”. Ela explica que o texto principal não tem a força de tratado para não violar o princípio da soberania nacional, e que, por isso, ainda não há no mundo um Tribunal Universal dos Direitos Humanos. Atualmente, existe a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Tribunal Africano de Direitos Humanos. Conforme a professora de Direito explica, os países orientais, sobretudo os asiáticos, consideram que o texto da ONU foi baseado em uma visão “eurocentrica”. Instalar um tribunal mundial seria um “desafio colossal e seria necessário relativizar os direitos humanos”, pontua a professora francesa, que mora no Brasil há mais de 20 anos.
Entretanto, apesar de não ser um tratado internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos inspirou praticamente todos os países democráticos do mundo ocidental a usaram para elaboração de suas Cartas Magnas aprovadas depois de 1948. Na Constituição Federal do Brasil, de 1988, o artigo 5º reflete muito desta declaração, ao garantir aos cidadãos brasileiros direitos individuais e coletivos como: a vida, liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de imprensa com direito de resposta, acesso à informação, proibição da tortura, direito a privacidade, liberdade de trabalho, liberdade de locomação, liberdade de propriedade, de associação, de voto, além das penalidades que um cidadão possa sofrer em caso de cometer crimes, sendo proibido a pena de morte e prisão perpétua, e nem trabalho escravo, entre outros artigos. Tratados internacionais importantes, do qual o Brasil é signatário, também foram inspirados na Declaração de Direitos Humanos, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente de 1989. Esses tratados são juridicamente vinculantes e, caso haja descumprimento de algum artigo deles, os países signatários podem sofrer sanções da comunidade internacional.
A professora avalia que não há condições de um país que não é democrático, com um regime ditatorial, de respeitar os direitos humanos. “Essa declaração é um grande avanço, apesar de ser considerada, por vezes, uma utopia. Ela consagrou todas as liberdades fundamentais do ser humano. Em uma ditadura, haverá algum tipo de violação da liberdade humana. Assim, não é possível conciliar um regime autoritário com direitos humanos”, afirma Juliette. Ela ainda cita o caso de Cuba, que é um país de regime comunista, que prioriza as garantias coletivas. “Na visão comunista, de nada adianta esses direitos de liberdade se não tiver direito a moradia, de se vestir, de comer, direitos mais coletivos e econômicos. É por isso que o Estados Unidos só assinou o Pacto de Direitos Civis e Políticos, enquanto a União Sovietica, satélite do socialismo, só assinou o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais”, destaca a especialista em Direitos Humanos. Esse dicotomia, entretanto, perdeu o sentido na década de 1990, quando ficou compreendido que os dois pactos são necessários nas democracias.
Juliette Robichez não entende como um texto tão bonito, que inspira tanto a liberdade do ser humano, atualmente, possa ser visto como algo repudiável. Para ela, tal repúdio não faz o menor sentido, assim como pessoas que louvam a tortura. “A tortura é proibida de maneira absoluta em todos os tratados, mas a liberdade de expressão, por exemplo, pode ser relativizada. Existe algumas excessões, como de problema com a ordem pública. Mas para a tortura, não existe nenhum tipo de excessão”, frisa. A professora credita a falta de conhecimento a apologia a tortura, ou, de fato, a pessoas de má-fé. “Os direitos humanos são universais e devem beneficiar a todos. Eu não vejo como se pode pregar a tortura para combater a violência, pois todo mundo sabe que a violência gera mais violência. As pessoas que repudiam os direitos humanos não sabem que usam esses direitos, como o da liberdade de expressão ao manifestar esse tipo de apoio”, declara. Ela complementa que até mesmo quem defende o fim dos direitos humanos é beneficiado por eles com direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, entre outros. Também reforça que essas mesmas pessoas, um dia, podem ser vítimas da desigualdade de direito na humanidade.
O conhecimento da própria história é a chave para compreender esses direitos na sociedade atual. Juliette reforça que até mesmo a Igreja Católica foi uma das inspiradoras da Declaração Universal, ao humanizar as vítimas da guerra e que o repúdio a essa carta faz com que os povos voltem “a tempos de conflito e de guerra, de ódio e sofrimento”. Ela já observa a diminuição de direitos das mulheres e há indicativos de redução de direitos da população negra, com questionamento constante das cotas. O casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil também pode estar em jogo, por ser legalizado a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e não por lei. Questionada se esse repúdio não é relacionado ao ativismo de pessoas contra as violações do Estado, Juliette reflete que, no Brasil, quem mais precisa desses direitos são as “minorias estigmatizadas por uma classe dominante, que quer a liberdade de expressão para si mesmo, mas não quer para as demais pessoas, por exemplo”. Ela reconhece que o país enfrenta problemas gravíssimos, que, constantemente são denunciados a organizações internacionais. “Todos denunciam a existência de uma parte da sociedade que é invisível, que não pode gozar desses direitos, apesar de terem sido assinados pelo Brasil através de tratados. O problema no Brasil é a concretização desses direitos, que são direitos fundamentais”, avalia.
NOVO GOVERNO E MEDO DO RETROCESSO
Juliette analisa o avanço do Brasil entre os anos de 1988 e 2012. “O que o Brasil conseguiu fazer nesses anos impressionou o mundo inteiro, tanto que os governantes brasileiros eram elogiados. O que aconteceu no Brasil não aconteceu na Índia, que faz parte do BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul]. A Índia não tratou da desigualdade social como o Brasil tratou”, pondera. Outra avaliação é que, mesmo com todos os problemas de corrupção que são cotidianamente denunciados, os dados internacionais, que avaliam o crescimento econômicos e sociais, indicam que o Brasil melhorou seus índices de desigualdade. Um deles é o Gini, que, quanto menor o coeficiente, menor o índice de desigualdade no país. Apesar da melhoria, o Brasil tem que fazer mais pelo seu povo, conforme diz a professora, e com isso, um governo que flerta mais com o autoritarismo é preocupante para o combate a desigualdade social.
A professora avalia que esse retrocesso na concretização dos direitos humanos não ocorre só no Brasil. Afirma que é um movimento mundial, com destaque para o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que considera os direitos humanos como algo secundário, sendo a prioridade uma política econômica. “Isso influencia a política de outros países, como o do Brasil, com a eleição de um presidente que se inspira nele”, comenta em alusão a eleição do candidato Jair Bolsonaro, capitão da reserva.
Conflitos com ativistas dos direitos humanos podem se acentuar. O Brasil é o país que lidera no mundo o número de assassinatos de ativistas do meio ambiente e da proteção de comunidades indígenas, por exemplo. “O que é um ativista senão uma pessoa que dedica seu tempo, seu conhecimento, sua energia para uma minoria, sem retorno e sem lucros. São pessoas admiráveis, que devemos apoiá-las, e que devem se tornar nomes de ruas no lugar de colocar nomes de políticos corruptos ou generais”, indigna-se.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA), Jerônimo Mesquita, afirma que a luta pelos direitos humanos é uma “luta diária, de combate a desigualdade e pela democracia, pela socialização, por alimentação, escola, de saúde de qualidade”, e por isso, todos que estão nesta trincheira, sofrem todos os dias com ameaças por combater um Estado violador. “Os direitos humanos, em certa medida, se firma como a luta contra o Estado como grande violador. Por isso, essa ideia de que direitos humanos é para bandido. Mas é que o Estado é o grande violador de pessoas. E diferente quando a polícia mata alguém, porque ela é a força estatal, ela tem que agir dentro da lei”, frisa. Na Bahia, através da OAB, ele acompanha diversas violações do Estado. Nos últimos anos, a Ordem tem se aberto para discussõs sobre violações dos direitos humanos na Bahia e sucitado debates como abuso de autoridade da força policial
Para Jerônimo, o tão temido discurso de ódio que elegeu Jair Bolsonaro a presidente deve ser apenas “discurso de eleição”. Ele tem a fé de que, já empossado como presidente, Bolsonaro se comporte como “presidente de todos brasileiros e vai cumprir a constituição que ele está submetido e que garante esses direitos”. Jerônimo também declara que o Brasil é um país racista, com violência diária a LGBTs. E o que muda agora é que, com o discurso de combate aos direitos humanos, que elegeu Bolsonaro, há um “discurso espalhado e a sensação de impunidade que dá as pessoas o direito de agredir”.
A ilação de que as bandeiras dos direitos humanos são do comunismo, de um partido de esquerda, para ele, se trata de desconhecimento de quem os propaga. “Os Estados comunistas não são simpáticos aos direitos humanos”, afirma. Ele reforça a declaração da professora Juliette, de que nos países capitalistas se privilegia as liberdades individuais, enquanto que, nos comunistas, as coletivas. “Em ambos, há grande desrespeito aos direitos humanos. No capitalismo, se dá liberdade, mas não se dá direitos sociais”, sintetiza. Do ponto de vista religioso, ele afirma que os Direitos Humanos não se sobrepõe a fé de ninguém, pelo contrário. Reforça que líderes religiosos, abertamente, não combatem tais direitos. “Você não vê o Papa Francisco combater os direitos humanos, nem uma entidade de candomblé, um rabino, por exemplo. Mas há interpretações que proibem o aborto, o casamento gay. Toda religião é interpretação de alguma coisa, e o direito protege a todos, inclusive a religiosa, e o resto é posição política de cada um”, declara. A chave para a garantia dos direitos humanos em uma democracia é a cidadania. “Acho que as pessoas devem conhecer mais os seus direitos, devem se articular mais, participar de ONGs, sindicatos, organizações de classe como a OAB, participar mais da vida social. Participar dos conselhos comunitários, nos poderes e de cada decisão que o governo tome. A cidadania é isso, o direito de ter direitos”, finaliza.
VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NA BAHIA
O caso mais recente de violação aos direitos humanos que foi denunciado internacionalmente foi o Caso Cabula, ocorrido em fevereiro de 2015. A ONG Justiça Global formalizou uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre ameaças, intimidação e perseguições feitas por policiais militares da Bahia a integrantes da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, uma articulação de entidades que lutam contra o genocídio da população negra (veja aqui). Os integrantes da campanha foram ameaçados após denunciar que as vítimas do Cabula não entraram em confronto com a Polícia Militar na Vila Moisés. De acordo com a organização, eles foram executados, como comprovado posteriormente nos laudos necroscópicos e em inquérito feito pelo Ministério Público da Bahia. Outra violação acompanhada pela OEA ocorre nos quilombos Rio dos Macacos, na Base Naval de Salvador, e Pitanga de Palmares, em Simões Filho. Os dois quilombos estão em disputa judicial acerca dos seus territórios junto à União. A Defensoria Pública da Bahia e da União acompanha esses casos. Outro caso denunciado pela Anistia Internacional na OEA foi o desaparecimento do jovem Davi Fiuza, em outubro de 2014.