Resolução 624 do Contram: Preferência para o respeito

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Publicada no dia 21 de outubro de 2016, encontra-se em vigor e já gera certa polêmica a Resolução nº 624/2016 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), a qual versa sobre a fiscalização de sons produzidos por equipamentos utilizados em veículos, cuja inobservância, uma vez constatada, ensejará autuação na seara administrativa, com base no art. 228 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). E é precisamente em torno da forma de constatação da referida infração que se dá a controvérsia.

É sabido que na vigência da ora revogada Resolução 204/2006 eram muitas as dificuldades para se fiscalizar a infração prevista no art. 228 do CTB, e a consequência disso era uma quase inexistência de fiscalização/autuação da conduta infracional em tela. Desse modo, a aplicabilidade das exigências contidas na aludida norma regulamentar restava prejudicada pelos muitos óbices operacionais*. Com o advento da nova resolução, fica proibida a utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som audível pelo lado externo, independentemente do volume ou frequência, que perturbe o sossego público, nas vias terrestres abertas à circulação (art. 1º, Res. 624/2016), o que, por certo, facilitará muito a fiscalização das infrações praticadas com abuso na utilização de som automotivo.

De se destacar que a Lei das Contravenções Penais, em seu art. 42**, prevê que perturbar o trabalho ou o sossego alheio é fato punível com prisão, de quinze dias a três meses, ou multa, sendo uma das hipóteses de cometimento da infração penal o abuso de instrumentos sonoros ou sinais acústicos, não havendo necessidade de prova técnica para a configuração do ilícito, conforme reiteradas decisões nessa linha:

CONTRAVENÇÃO PENAL – PERTURBAÇÃO DO TRABALHO OU DO SOSSEGO ALHEIOS – POLUIÇÃO SONORA – PROVA – ALVARÁ – O abuso de instrumentos sonoros, capaz de perturbar o trabalho ou o sossego alheios, tipifica a contravenção do art. 42, III, do Decreto-lei 3688/41, sendo irrelevante, para tanto, a ausência de prova técnica para aferição da quantidade de decibéis, bem como a concessão de alvará de funcionamento, que se sujeita a cassação ante o exercício irregular da atividade licenciada ou se o interesse público assim exigir. (TAMG – Ap 0195398-4 – 1ª C.Crim. – Rel. Juiz Gomes Lima – J. 27.09.1995).

PENAL E PROCESSUAL PENAL ·CONTRAVENÇÃO PENAL PERTUBAÇÃO DO SOSSEGO ALHEIO. ART. 42, INCISO III, DECRETO-LEI 3.688/41. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. APELO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1) A contravenção de perturbação do sossego alheio com abuso de instrumentos sonoros ou sinais acústicos está disposta no art. 42, III da Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei 3.688/41). 2) No caso dos autos, a autoria e materialidade restam comprovadas pelos elementos de prova constantes nos autos, especialmente o Boletim de Ocorrência Policial e Relatório Circunstanciado nº 038/2016 (ordem 0) e o depoimento da testemunha ouvida em juízo, que corrobora a versão trazida pela inicial acusatória, não havendo que se falar em ausência de provas suficientes para embasar a condenação, tratando-se de provas robustas, afastando meros indícios. 3) A discussão acerca da inexistência de laudo pericial atestando a contravenção é inócua, pois o crime de perturbação do sossego alheio prescinde de prova técnica, sendo possível sua comprovação através de prova testemunhal, o que restou satisfeito nos autos. 4) […]. 5) Apelo conhecido e não provido. 6) Sentença mantida. (TJ-AP – APELAÇÃO APL 00273409620168030001 AP).

São muitos os estudos comprovando que a poluição sonora pode causar, para além da perda auditiva, diversos outros distúrbios, tais como: irritação, alterações de sono, doenças cardiovasculares e perda de desempenho cognitivo em crianças (dificuldade de aprendizado, por exemplo)***. Ao mesmo tempo, muitos são também os legitimados para combater os excessos nessa área. Consoante o art. 23 da Constituição Federal, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.

Ao teor da Resolução 624/2016, a questão passa a ser, muito apropriadamente, tratada como perturbação do sossego público, cabendo aqui ponderar: ora, se até mesmo autuações que têm repercussão na esfera penal podem ser lavradas sem a obrigatoriedade de prova técnica, qual o sentido de se manter uma resolução que, no âmbito administrativo, inviabilizava a fiscalização de uma conduta causadora de tantos prejuízos e transtornos à coletividade?

É excepcional, nesse contexto, a lição do decano do Supremo Tribunal Federal, Ministro Celso de Mello, quando observa que “não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” (STF, MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Melo, j. 16/9/1999).

Vale ressaltar, ademais, que se afigura de todo dispensável uma provocação ou um prévio requerimento do particular instando a fiscalização de trânsito a reprimir a conduta de quem abusivamente se utiliza de som automotivo. Como representante do Estado, o agente de fiscalização de trânsito exerce poder de polícia, pelo que pode, de ofício, reprimir a atividade lesiva ao interesse público, tomando as medidas cabíveis no âmbito de sua competência.

Estabelecer que, diante de um flagrante de cometimento da infração prevista no art. 228 do CTB, caberia ao agente de fiscalização descer da viatura, “posicionar o equipamento de medição da pressão sonora (decibelímetro) a uma altura aproximada de um metro e meio, com tolerância de mais ou menos vinte centímetros acima do nível do solo e na direção em que fosse medido o maior nível sonoro”****, para, enfim, fazer prova da infração e ter elementos para autuar uma infração que já restara constatada pela audição do agente público, somente poderia ser tido como razoável e apropriado numa perspectiva deveras individualista, entretanto, como as atividades administrativas devem ser desenvolvidas pelo Estado com vistas ao interesse da coletividade*****, bem-vinda seja a nova regulamentação do CONTRAN.

*Luís Carlos Paulino é cearense. Escritor, colunista, pedagogo, bacharel em Direito, especialista em Gestão e Direito de Trânsito, policial militar, consultor da Associação Brasileira de Educação de Trânsito – ABETRAN.


* Para que se tenha a compreensão do grau de complexidade dos procedimentos previstos na revogada resolução 204/2006, basta que se analise dois artigos nela contidos, os quais deixam bastante evidente a dificuldade para se proceder à autuação do infrator dado a abusar do som automotivo:

“Art. 1º. A utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som só será permitida, nas vias terrestres abertas à circulação, em nível de pressão sonora não superior a 80 decibéis – dB(A), medido a 7 m (sete metros) de distância do veículo.

[…]

Art. 3º. A medição da pressão sonora de que trata esta Resolução se fará em via terrestre aberta à circulação e será realizada utilizando o decibelímetro, conforme os seguintes requisitos:

  1. Ter seu modelo aprovado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – INMETRO, atendendo à legislação metrológica em vigor e homologado pelo DENATRAN – Departamento Nacional de Trânsito;

  2. Ser aprovado na verificação metrológica realizada pelo INMETRO ou por entidade por ele acreditada;

III. Ser verificado pelo INMETRO ou entidade por ele acreditada, obrigatoriamente com periodicidade máxima de 12 (doze) meses e, eventualmente, conforme determina a legislação metrológica em vigor;

  • 1º. O decibelímetro, equipamento de medição da pressão sonora, deverá estar posicionado a uma altura aproximada de 1,5 m (um metro e meio) com tolerância de mais ou menos 20 cm (vinte centímetros) acima do nível do solo e na direção em que for medido o maior nível sonoro”.

** Lei das Contravenções Penais, art. 42:

“Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:

I – com gritaria ou algazarra;

II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;

III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;

IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.

*** Para mais informações, recomenda-se a leitura do texto intitulado “O som e a fúria – efeitos da poluição sonora não causam só a perda da audição”, divulgado na Revista Galileu. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/blogs/segunda-opiniao/noticia/2014/08/o-som-e-furia-efeitos-da-poluicao-sonora-nao-causam-so-perda-da-audicao.html. Acesso em 23 out. 2016.

**** Na prática, a execução dessa sequência de procedimentos mostrou-se “missão-quase-impossível”, mormente se considerarmos que a grande maioria dos sons automotivos são hoje dotados da função controle remoto. O que se dava com muita frequência era que o condutor/proprietário do veículo, frequentando um determinado estabelecimento comercial e abusando na utilização do som automotivo, diminuía o volume do som ante à aproximação da fiscalização e o aumentava tão logo essa se afastava, o que era objeto de críticas e de incompreensão por parte dos eventuais prejudicados pela perturbação.

***** Nesse diapasão, em um eventual conflito entre o interesse coletivo e o particular, há que prevalecer o primeiro.

 

Por Luís Carlos Paulino*

 

Fonte: Blog Transitar

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