De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado, em 2015, foram registrados 63 casos de estupro em Vitória da Conquista. Entre os 417 municípios baianos, a “capital” do Sudoeste é a quinta mais violenta para as mulheres.
Maria*, 23 anos, é uma das vítimas do ano passado. Era 21 de agosto de 2015 uma sexta-feira, quando ela estava em casa no Bairro Brasil*, Zona Oeste de Vitória da Conquista. O que parecia ser um dia comum para a jovem acabou se transformando num pesadelo. “Eu estava no sofá, que fica ao lado da porta, foi quando eu o vi. Fui até ele, pois pensei que era colega do meu primo, mas ele apontou a arma. Eu percebi que quando ele me viu, a intenção de roubar tinha desaparecido”, lembra.
Minutos antes de o estupro acontecer, o primo de Maria, Ricardo*, 17 anos, tinha sido abordado na rua em um assalto. Ele estava sem dinheiro e sem celular. O jovem armado tinha 14 anos e obrigou Ricardo a levá-lo até a casa onde morava com a prima.
“Eu estava de camisola, com a arma apontada para mim. Ele me mandou tirar a roupa, e me levou para o quarto do meu primo. Com a arma apontada, ele o mandou tirar a roupa também e deitar de bruços”, relembra Maria. O menor já tinha sete passagens pela polícia. Nenhuma de estupro. “Ele fez tudo comigo. Meu primo ficou olhando, deitado de bruços”. Maria tentou afugentar o adolescente: “eu falei várias vezes que meu namorado ia chegar, que era melhor ele ir embora. Foi o jeito que encontrei para assustar ele, mas sabia que meu namorado não iria lá. Pensei em pegar a arma, mas estava apontada para meu primo. Tive medo de ele disparar”. Não bastasse a violência física ele também começou a xingá-la. “Ele repetiu várias vezes: ‘Vagabunda, conta para o namoradinho o que estou fazendo com você. Vadia, você quer!’”.
O drama de Maria é vivido por outras tantas mulheres e o número de vítimas pode ser muito maior que o registrado. A mulher que sofre o estupro tem medo do julgamento, das ameaças feitas pelo agressor, das críticas e de reviver o sofrimento ao contá-lo. Isso tudo dificulta a denúncia. Ainda de acordo com o IPEA, os dados oficiais representam apenas 10% dos casos ocorridos.
Depois de ter estuprado Maria, o agressor levantou-se, roubou um tênis e dois celulares. Foi embora. Após suspeitarem da movimentação e ouvirem gritos da vítima, os vizinhos chamaram a polícia e o SAMU 192. O primo de Maria foi junto com os policiais na tentativa de encontrar e identificar o agressor. Em menos de meia hora, eles voltaram com o suspeito. Maria então teve de ir ao hospital ao lado do garoto que tinha acabado de estuprá-la. “Não tinha ambulância disponível, eu fui na viatura com os policiais, meu primo e uma amiga que me acompanharam. O suspeito estava no camburão”, conta.
A Lei 12.845 de 2013 obriga os hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) a prestarem atendimento emergencial às vítimas de violência sexual, incluindo o diagnóstico e tratamento de lesões e a realização de exames para detectar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. A jovem estuprada foi levada para o Hospital Esaú Matos, onde tomou 16 comprimidos e duas injeções. “A medicação era muito forte, a injeção doía muito. Eu chorava muito”, recorda.
Apesar das leis e da criação de instituições específicas para atendimento, como as Delegacias da Mulher, é recorrente a reclamação das vítimas de estupro e de outros tipos de violência contra a mulher sobre a maneira como são tratadas nos locais responsáveis por receber as denúncias e dar auxílio médico e psicológico. Falta qualificação dos funcionários.
Maria vivenciou esse despreparo. Após ser sedada no hospital, houve uma tentativa para que ela prestasse depoimento. “Eu só tinha vontade de tomar um banho. Ele (o estuprador) estava drogado. O cheiro dele era insuportável. Eu sentia muito nojo de mim. Me sentia muito suja. Mas mesmo assim tive de ir, e a sala que eu estava ficava ao lado da sala do suspeito. Eu ouvi todo o depoimento dele, fiquei com muito medo. O calmante começou a fazer efeito, o escrivão era lento. Tive que repetir o que aconteceu várias vezes para ele registrar”.
Naquela noite, Maria não foi capaz de prestar testemunho. Estava em choque e sedada. A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória da Conquista foi procurada para explicar o procedimento, mas até o momento do fechamento desta reportagem, a entrevista não foi concedida.
Maria foi para a casa do namorado às três horas da madrugada. No dia seguinte, voltou ao local onde tudo ocorreu. Pegou algumas roupas e foi para sua cidade no interior da Bahia para ficar ao lado da sua família. “Minha família não toca no assunto, mas me escutou quando eu precisei desabafar. Me apoiaram muito”, relata.
Ela voltou uma semana depois para Conquista, mas vive em outro lugar. “Não moro mais lá. Moramos num apartamento. Não quis voltar lá, me desfiz da roupa que estava… não conseguia olhar para ela. Não sinto nada por ele, não tenho raiva dele. Quero que ele fique preso e quando sair, que saia com algum aprendizado”, comenta.
A jovem teve acompanhamento psicológico durante seis meses. “Minha tia me levou em um psicólogo e no médico. No começo eu ficava muito no ‘se’: ‘se eu tivesse reagido’, ‘se eu tivesse gritado’, mas o psicólogo era muito bom, fazia as perguntas certas, passava exercícios. Me ajudou a superar. Não participei de grupos, e nem tive contato com outras pessoas que foram estupradas”, afirma.
Em casos traumáticos como o de Maria, de acordo com a psicóloga do Centro Universitário de Atenção à Saúde da Uesb (CEUAS), Carla Eloá, é importante que a vítima possa expressar o que sente e pensa sobre a questão sem ser julgada: “Isso possibilita que ela perceba o evento de forma realista, sem evitações e culpabilizações e siga sua vida”.
A vítima foi orientada a procurar o Centro de Apoio e Atenção à Vida Dr. David Capistrano Filho (CAAV), mas, segundo ela, houve descaso e falta de informação: “mandaram eu ir pela manhã, mas quando eu cheguei lá não tinha enfermeira para atender. Eu perdi meu tempo e senti que faltou um pouco de atenção. Acho que esses centros têm que estar à disposição da vítima. Eu não tinha cabeça para ficar correndo atrás de médico, minha família me deu condições de fazer o tratamento no hospital particular, mas e quem não tem?!”.
A Prefeitura de Conquista informou que o CAAV é referência no atendimento a vítimas de violência sexual, com uma equipe multiprofissional (enfermeiros, psicólogos, médicos) capacitada dentro do protocolo do Ministério da Saúde, que atende a estes usuários de forma prioritária, integral e humanizada. Informou ainda que, em 2015, o serviço atendeu 98 vítimas de violência do município e, em 2016, até o mês de março foram 31 atendimentos.
Hoje em dia Maria carrega o trauma, mas tenta levar uma vida normal. “Tive muito apoio da minha família, amigos e namorado. Pude ir ao médico me tratar. Mas sou mais medrosa do que eu já era. Não ando à noite sozinha, evito pegar táxi, tenho medo de todos os homens estranhos, sempre penso muito antes de sair com meus colegas. Não tenho a liberdade que tinha antes”, desabafa.
Oito meses após Maria ter sido estuprada, a violência sexual continua sendo manchete em Vitória da Conquista. O Blog do Rodrigo Ferraz noticiou, em 21 de fevereiro de 2016: “Jovem é vítima de estupro próximo ao IFBA” , e em 3 de Abril: “Homem é linchado após estuprar duas meninas no Vila Eliza”. Já o portal MidiaBahia destacou, em 2 de fevereiro deste ano: “10 mulheres apontam homem como responsável por estupros em Vitória da Conquista”.
Enquanto a mudança do comportamento machista não acontece, o que se pode fazer é denunciar. “A culpa nunca foi minha. A culpa é sempre de quem escolhe fazer isso, nunca é culpa da vítima. Não podemos arranjar desculpas para os agressores. A primeira coisa que precisa ser feita é denunciar”, defende Maria.
Alguns órgãos em Conquista oferecem atendimento e acompanhamento psicológico, social, jurídico, orientação e informação a todas as mulheres em situação de violência doméstica e sexual, como é o caso do Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos (CRAAV), inaugurado em 2006. Além do CRAAV, o município conta com Centros de Referência Especializada da Assistência Social (Creas) e o Conselho Municipal da Mulher, criado há 18 anos, que tem como finalidade formular e promover políticas, medidas e ações para a garantia dos direitos da mulher.
*Foram utilizados nomes e locais fictícios a pedido dos entrevistados.
Informações úteis:
Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180
Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos
Endereço: Rua Jesiel Norberto, nº 40, bairro Candeias
Telefone: (77) 3424.5325
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)
Endereço: Rua João Pessoa, nº 221 B – Bairro: Centro
Telefone: (77) 3422-8200
Conselho Municipal da Mulher
Endereço: Praça Joaquim Correia, 55, Centro
Telefone: (77) 3424-8500
Centro de Referência em DST e Aids de Vitória da Conquista
Endereço: Praça João Gonçalves s/nº – Centro
Telefone (77)3422-8132
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam)
Endereço: Rua Humberto de Campos, 205 – Bairro: Jurema
Telefone: (77) 3425-4414
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